Um ano, quatro meses e oito dias foi o tempo que o biscateiro Paulo Roberto dos Santos, de 44 anos, esperou na cadeia para ficar frente a frente com um juiz. Morador da Rocinha, foi flagrado por policiais militares com cinco gramas de cocaína e 11 gramas de maconha na boca de fumo da Cachopa, na parte alta da favela, na manhã do dia 9 de março de 2013. Acusado de tráfico, ficou confinado na Penitenciária Jonas Lopes de Carvalho, conhecida como Bangu IV, até ser absolvido. A Justiça entendeu que, além de ser usuário, Paulo era esquizofrênico. O processo foi extinto em julho do ano passado. O custo da prisão: R$ 28 mil.

— Fui preso porque fiquei esperando o troco. Fui comprar o pó de R$ 30, como fazia sempre. Entreguei uma nota de R$ 50. De repente, a polícia chegou e deu dois tiros para o alto. Os meninos (traficantes) saíram correndo e largaram uma sacola com as drogas. Não corri. Disse que era usuário, mas eles (policiais) não acreditaram em mim — conta o biscateiro, cujas mãos habilidosas recuperam peças jogadas no lixo.
Dos R$ 45 milhões gastos em 2013 com presos provisórios (como são chamados os presos em flagrante que aguardam julgamento), um montante de R$ 19,7 milhões poderia ter sido economizado, segundo um levantamento feito pelo Instituto Sou da Paz e o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (CESeC/Ucam).
Os pesquisadores analisaram os 7.734 processos de todas as pessoas presas em flagrante durante o ano de 2013 e constataram que 54% dos encarcerados foram submetidos a uma situação mais grave do que a medida recebida após o julgamento. Somente 19% dos detentos foram efetivamente condenados ao regime fechado. Outros 21% ainda aguardam julgamento e 6% tiveram seus processos alterados na Justiça.
— Isso é histórico, inconstitucional e inaceitável. Um problema do mal funcionamento do sistema de justiça criminal. E todos temos responsabilidade. Nós, enquanto sociedade, precisamos admitir que a privação de liberdade é um recurso extremo e que só deve ser utilizada para pessoas realmente perigosas e violentas. Se não há um requisito legal claro, essa pessoa não pode ser mantida presa — afirma a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora da pesquisa, cujo slogan é “presos provisórios, danos permanentes”.
AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA
As audiências de custódia, que começam a ser realizadas no próxima quinta-feira, podem ajudar a reduzir o tempo de encarceramento e o desperdício de dinheiro público. Em 24 horas a partir da prisão em flagrante, será montado um mini dossiê com documentos, como registro de ocorrência, folha de antecedentes criminais (se houver) e possíveis processos na Justiça. Dois juízes atenderão os presos em flagrante no Fórum do Rio, de 11h as 18h, e analisarão quais medidas poderão ser tomadas.
Coordenadora do projeto, a juíza auxiliar da presidência do Tribunal de Justiça (TJ), Maria Tereza Donatti, ressalta que presos perigosos não serão soltos. O que será avaliado, segundo a magistrada, é se o detento ficará confinado até receber sua sentença.
— Os chefes de uma organização criminosa não vão chegar a uma audiência de custódia, porque, nesses casos, o Ministério Público e a polícia fazem uma investigação criteriosa e conseguem um mandado de prisão contra eles. É bem diferente dos presos em flagrante em que o juiz pode aplicar uma pena restritiva de direitos, como uma prestação de serviços à comunidade ou até determinar que o detento seja monitorado por uma tornozeleira — comentou Donatti, que adiantou que está sendo preparada uma central de monitoramento eletrônico para presos provisórios.
No entanto, para o procurador de Justiça da 2ª Câmara Criminal e professor de Processo Penal da Escola Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), Antônio José Campos Moreira, o procedimento é mais uma desculpa das instituições para esvaziar o sistema penitenciário:
— É uma excrescência jurídica e inconstitucional. Na minha opinião, há dois vícios graves: os juízes que julgarão os casos nas audiências não serão de varas criminais e a presença do MP não é obrigatória. Outra coisa absurda é que tudo que for declarado pelo preso será lacrado, não podendo ser usado em seu julgamento depois. As audiências de custódia vão provocar, a meu ver, um problema sério na segurança pública — opina o procurador.
QUATRO EM CADA DEZ PRESOS NO RIO SÃO PROVISÓRIOS
O secretário estadual de Administração Penitenciária (Seap), coronel Erir Ribeiro da Costa Filho, reconhece que a prisão provisória agrava a superlotação e aumenta o custo no sistema prisional. Segundo ele, dos 43.500 presos no estado do Rio, cerca de 18 mil são provisórios. Ou seja, quatro em cada dez detentos no Rio estão encarcerados sem terem sido julgados.
O número acompanha a média nacional, de acordo com último relatório do Ministério da Justiça, com dados de junho de 2014. De acordo com o secretário, tráfico de drogas, roubo e homicídio aparecem como os crimes mais comuns entre os presos provisórios no Rio:
— É muita despesa. A carga é muito pesada. Aí o Estado deixa de investir na própria segurança pública e no próprio sistema. Estamos torcendo para que as audiências de custódia diminuam o número de presos provisórios — disse Erir, que já esteve no comando da Polícia Militar e, há pouco mais de cinco meses, dirige o sistema penitenciário fluminense — Antes eu queria prender todo mundo, agora quero mais é soltar!
Não raro, detentos que praticaram crimes sem violência se misturam com presos mais perigosos. De riso fácil, voz imponente e barriga um pouco avantajada, o camelô Marcelo (nome fictício), de 48 anos, foi preso por pirataria no dia 27 de novembro de 2013. Só foi absolvido no dia 15 de outubro de 2014, tempo suficiente para, até hoje, ter na memória, de cor e salteado, os principais artigos do Código Penal.
— O meu é 184 (violação de direito autoral), mas me botaram junto com 121 (homicídio), 125 (aborto), 157 (roubo), 171 (estelionato). Quem nunca teve passagem, vai pegando experiência lá dentro e vê várias coisas ruins. Muitos acabam saindo piores do que quando entraram — conta Marcelo, que foi flagrado vendendo 88 DVDs piratas na Uruguaiana, em frente ao Mercado Popular, no Centro do Rio.
Ao saber que sua estadia custou R$ 9 mil, Marcelo arregalou os olhos e disse incrédulo:
— Isso tudo? Imaginava que tivesse sido bem menos. Aquele colchão velho, aquela quentinha horrível, com salsicha direto, não dão R$ 9 mil — opinou.
Para calcular o custo total, os pesquisadores multiplicaram o tempo em que cada um dos 7.734 detentos passou na cadeia pelo custo mensal do preso provisório, estimado em R$ 1.707,61 e composto por despesas, como alimentação, gastos operacionais e salários de funcionários. Em média, o tempo de confinamento durou 101 dias, segundo a pesquisa. O Ministério da Justiça considera, no entanto, 90 dias um prazo minimamente razoável. No caso de Paulo, foram quase 500 dias.
— Perdi meu tempo lá dentro. Foi a pior coisa que me aconteceu. Tenho pesadelos até hoje. Quando recebi minha sentença, a juíza me disse: “Fique longe de quem vende e compra drogas”. Morando na Rocinha é muito difícil, mas estou conseguindo. Passei muito sufoco preso. Chorei muito — conta o biscateiro, relembrando o martírio e as cenas de violência, como a agressão a um colega que usou o perfume do chefe da cela. — Ele só passou uma semana, mas foi o bastante para aprender as leis da cadeia.
No Rio, a superlotação nas carceragens exclusivas para presos provisórios supera até mesmo as do regime fechado. Em alguns casos, como o da Cadeia Pública Romeiro Neto, em Magé, chega a ultrapassar em 152% a lotação máxima.
— As audiências de custódia são fundamentais para a diminuição do encarceramento de presos provisórios. Quem deve ficar preso é aquele que, efetivamente, oferece risco à sociedade — afirmou o juiz titular da Vara de Execuções Penais, Eduardo Oberg, responsável por fiscalizar as unidades penitenciárias.
Os dados inéditos da pesquisa serão disponibilizados a partir desta segunda-feira no site danospermanentes.org. Por meio da ferramenta, será possível fazer simulações dos gastos com os presos, além de conhecer um resumo da história de cada um deles. O diretor-executivo do Instituto Sou da Paz, Ivan Marques, destaca ainda que o site também apresenta sugestões aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário para evitar prisões indevidas:
— O importante é mostrar que existem alternativas à prisão provisória. Encarcerar nem sempre é a solução — avalia Ivan Marques.
 Fonte: O GLOBO