Cerca de 8 mil pessoas presas em flagrante deixaram de entrar nos presídios em 2015, após passarem por audiências de custódia, informou nesta semana o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Ricardo Lewandowski.
Nessas audiências, que são feitas, em média, até 24 horas depois do flagrante, um juiz avalia a necessidade de manter o preso atrás das grades durante o processo judicial. A técnica começou a ser aplicada no Brasil em fevereiro, incentivada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Até então, os presos em flagrante eram levados automaticamente para delegacias, para o registro do boletim de ocorrência e, em seguida, a cadeias e centros de detenção provisória, onde aguardavam em média 6 meses por uma audiência judicial.
Ricardo Lewandowski fala sobre as audiências de custódia (Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF )
Para Lewandowski, que também preside o CNJ, a mudança é importante porque muitos dos presos “não são perigosos, não são violentos, portanto, não apresentam nenhum risco para a sociedade”, afirmou ao G1.

Levando em conta que cada preso custa R$ 3 mil mensalmente, Lewandowski calcula uma economia de R$ 500 milhões desde fevereiro. Em relação aos presídios, o ministro afirma que 11 unidades deixaram de ser feitas desde o início do projeto.
Para determinar a liberdade provisória a alguém, um magistrado considera os antecedentes criminais, o risco que o suspeito representa permanecendo nas ruas e a gravidade do crime, entre outros critérios.
AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA
14.571 pessoas foram submetidas a sessões do tipo nos últimos 7 meses
Em 51% dos casos, a pessoa continuou presa
45% dos presos ganharam a liberdade provisória
4% das prisões foram consideradas ilegais
Dados estaduais
Segundo o CNJ, os 26 estados já aderiram ao programa de audiências de custódia. Apenas o Distrito Federal avalia se usará a técnica.

Em levantamento feito pelo G1 até 1º de outubro, 17 estados já tinham números sobre o programa, como total de pessoas submetidas a essas audiências, quantidade de presos liberados e de pessoas mantidas atrás das grades.

Rio de Janeiro, Pará e Rio Grande do Norte implantaram o sistema neste mês e os números não foram incluídos no levantamento. No Mato Grosso do Sul, a ação foi iniciada recentemente apenas no interior. Em outros 5 estados (AC, AL, AP, RO e SE), as audiências começam nas próximas semanas.
Até o início de outubro, mais de 6,6 mil pessoas tinham conseguido a liberdade provisória após as audiências – ou 45% do total ouvido pelos juízes. 51% permaneceram presos, e 4% das prisões foram consideradas ilegais.
Diferentes entendimentos
G1 conversou com magistrados de todo o país e acompanhou audiências em São Paulo para entender em que casos as liberdades provisórias estão sendo concedidas (veja no vídeo no início do texto). Cada estado adotou um procedimento. Os juízes também têm visões diferentes sobre os crimes, as situações e condições para a liberação do preso.

O percentual de soltura – nome que se dá às ocasiões em que os juízes autorizam a liberdade provisória – varia entre 35% (Pernambuco) e 81% (Rondônia), segundo o CNJ. No estado de São Paulo, a soltura chega a 43% das situações e, no Espírito Santo e no Maranhão, em 49%.Ao autorizar a liberdade, o juiz pode aplicar fiança ou medidas cautelares e também a prisão domiciliar, algo mais raro (em São Paulo, foram apenas 4 casos desde fevereiro).
Maranhão deu início a um projeto piloto em outubro de 2014, dentro de uma ação para conter a crise carcerária no estado, que registrou fugas, rebeliões e confrontos entre fações, com mortes e decapitações no Complexo Penitenciário de Pedrinhas.

Já magistrados de Espírito Santo, Santa Catarina, Minas Gerais e Goiás preferem optar pela tornozeleira eletrônica em casos de reincidência de tráfico e furto nas audiências de custódia.

Por que foram criadas
As audiências de custódia estão previstas no pacto de San José da Costa Rica, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, e, segundo Lewandowski, asseguram um direito do preso, já que “o Brasil tem sido condenado por tribunais internacionais por causa desta situação prisional caótica”.
“Aquelas pessoas que cometeram crimes de menor potencial ofensivo, pequenos delitos, que têm chance de recuperar, que são primários, têm residência fixa, uma profissão ou uma atividade legítima, que possuem famílias, não há necessidade de custodiá-los, de prendê-los durante o processo criminal”, afirma o ministro.
Lewandowski critica a “cultura do encarceramento” no país, que hoje tem 600 mil presos. “Somos o quarto país que mais prende no mundo, atrás de Estados Unidos, China e Rússia.”
“Dos nossos presos, 40% são provisórios, que nunca viram o juiz – ou seja, 240 mil pessoas que passam meses, em média 6 meses presos, e lá sofrem todo o tipo de maus-tratos, às vezes violência sexual, e são aliciados pelo crime organizado. Estes são os males que vamos combater agora”, afirma o ministro.
Um relatório divulgado em setembro pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (Cesesc) e a ONG Sou da Paz aponta que há excesso das prisões preventivas: segundo os dados, 54% dos presos na cidade do Rio de Janeiro em 2013 ficaram atrás das grades indevidamente e só tiveram direito a um julgamento após 101 dias na cadeia.
O juiz Marcos Faleiros, que coordena o programa em Cuiabá (MT), entende que “a ideia das audiências de custódia é permitir que indivíduos que não sejam bandidos não entrem no sistema prisional e se transformem em soldados do crime, causando mais danos à sociedade quando saírem de lá. É uma espécie de segunda chance”.
Juíza Gisele de Oliveira participa de audiência de custódia do Espírito Santo, com a participação do ministro Ricardo Lewandowski (Foto: Divulgação/TJ-ES)
“As audiências de custódia estão sendo essenciais para que o juiz, presencialmente, faça uma boa e justa análise do flagrante. O objetivo não é soltar as pessoas de maneira irresponsável e sem critérios, mas qualificar a porta de entrada dos presídios, dosar e avaliar quem deve entrar e também verificar se o preso não sofreu tortura no momento da prisão”, avalia a juíza Gisele Souza de Oliveira, do Espírito Santo.
Em São Paulo, em seis meses, 277 detidos que passaram pelas audiências de custódia relataram maus-tratos.
Críticas
As audiências cautelares enfrentam críticas. Para alguns policiais, há retrabalho nas ruas, porque a pessoa em liberdade provisória pode voltar a cometer crimes.

É muito caro manter o preso atrás das grades, então acharam esta forma de economizar. É melhor deixar o preso na rua, e a sociedade pagar o preço do aumento da criminalidade, do que construir presídios?”
Magid Nauef Láuar, juiz e presidente da Anamages
Outra questão são os gastos da medida. O presidente da Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (Anamages), juiz Magid Nauef Láuar, entende que a presença do preso em uma audiência é desnecessária e onerosa para o Judiciário, porque a legislação brasileira já prevê que tanto delegado de polícia, quanto Ministério Público e Defensoria sejam rapidamente notificados após o flagrante.
Em maio, a associação tentou barrar, junto ao CNJ, a implantação das audiências de custódia no Brasil.
“Em São Paulo, por exemplo, ocorrem em média 140 flagrantes diários. Precisaria ter uns 10 juízes só para isso, sem contar o trabalho com escolta. É muito caro manter o preso atrás das grades, então acharam esta forma de economizar. É melhor deixar o preso na rua, e a sociedade pagar o preço do aumento da criminalidade, do que construir presídios?”, questiona o juiz Láuar.
Como funcionam as audiências de custódia (Foto: Arte/G1)
Como funciona
Para que o sistema pudesse ser implantado, os tribunais tiveram que adaptar salas e reforçar o policiamento interno. A sessão começa com o juiz questionando ao preso se ele quer falar sobre o crime do qual é acusado e se possui residência e emprego fixos.

Em seguida, um promotor, que faz a acusação, e um defensor público (que serve como advogado para detidos de baixa renda, que são a maioria) fazem perguntas e ponderações que podem ajudar o juiz a tomar a decisão.
O tempo médio de cada sessão é de 20 minutos. A ocasião, explica o presidente do Supremo, “não é o momento de entrar no mérito do crime. É o momento apenas de decidir se ele [o suspeito] vai responder ao processo em liberdade ou ser preso”.
Em Vitória (ES), para tentar facilitar a logística e prevenir problemas de segurança, o sistema foi implantado dentro da cadeia. O Tribunal de Justiça conseguiu um prédio dentro de um centro de triagem para acomodar os órgãos envolvidos e permitir o trabalho de assistentes sociais na reabilitação dos presos que são liberados. 
“Um dos problemas que se alega é que precisamos muitos agentes para a circulação dos presos pela cidade. Desta forma, é o juiz que se move e fica mais fácil e barato. Após ser preso pela Polícia Militar e passar pela delegacia para o boletim de ocorrência, o preso já vem para o centro onde faz exame de IML e aguarda a audiência”, explica a juíza Gisele Souza de Oliveira.
Em Vitória (ES), audiências de custódia ocorrem em prédio do tribunal dentro de centro de detenção provisória de presos (Foto: Tj-ES)Em Vitória (ES), audiências de custódia ocorrem em prédio do tribunal dentro de centro de detenção provisória de presos (Foto: Divulgação/TJ-ES)
A magistrada costuma “soltar” presos sem antecedentes criminais e suspeitos de crimes de menor potencial ofensivo, como furtos, estelionato e tráfico, quando se percebe que é para consumo próprio. Presos em flagrante por homicídios, latrocínios e tentativas de furto e roubo com violência, cujos crimes, em caso de condenação, os suspeitos começarão a cumprir a pena em regime fechado, permanecem atrás das grades durante o processo.

“Acontece cada vez mais a reincidência nas audiências em casos de furtos e tráfico. O preso acaba voltando para cá uns 10 ou 15 dias após ter tido uma oportunidade da Justiça em que teve a liberdade provisória concedida. Neste caso, a tendência é ficar preso ou haver algum encaminhamento para tratamento, se for usuário de drogas”, diz a juíza Gisele.

Sessões em São Paulo
Em São Paulo, o G1 acompanhou audiências de responsáveis de roubo, furto e tráfico. Em um dos casos, um jovem flagrado com pequenas quantidades de maconha e cocaína, dois celulares e uma bicicleta em uma praça no centro da capital permaneceu detido. Em outro, a juíza Cristina Esher Rondello soltou um jovem preso enquanto comia um lanche junto a um adolescente, que admitiu ser o proprietário de uma mochila com diversos tipos de drogas, inclusive lança-perfume.

Em São Paulo, jovem flagrado por tráfico de drogas é submetido à audiência de custódia e juíza decide mantê-lo preso durante o processo; à esquerda, a promotora do Ministério Público acusa; à direito, o defensor público pede a liberdade do réu (Foto: Tahiane Stochero)Em São Paulo, jovem flagrado por tráfico de drogas é submetido à audiência de custódia e juíza decide mantê-lo preso durante o processo; à esquerda, a promotora do Ministério Público acusa; à direita, o defensor público pede a liberdade do réu (Foto: Tahiane Stochero/G1)
“Eu costumo segurar, não solto normalmente, quando há tráfico, para aprender a lição. Nem que a Defensoria entre com um pedido de habeas corpus depois e o Tribunal conceda a liberdade em alguns dias”, afirma a juíza Cristina.
A promotora Tatiana Callé Heilman diz que, sempre em casos de tráfico, pede a manutenção da prisão. Já o defensor Urbano Finger Neto pede sempre a liberdade provisória ou o relaxamento da prisão.
A gente precisa saber quem precisa mesmo ir para a cadeia ou quem precisa é de apoio para a recuperação”
Juiz José Henrique Kaster Franco, de Nova Andradina (MS)
Prisões injustas
Por iniciativa própria, o juiz José Henrique Kaster Franco começou a realizar em junho as audiências em Nova Andradina, cidade no interior do Mato Grosso do Sul de cerca de 46 mil habitantes. A intenção dele era evitar abuso policial e prevenir a manutenção de prisões provisórias desnecessárias. Como ele trabalha sozinho, fixou prazo de 72 horas para a realização das sessões.


“Fiz uma audiência de uma mulher acusada de estuprar uma menina de dois anos na qual percebi que se tratava de uma pessoa com atraso mental que já havia recebido tratamento psiquiátrico. Em dois dias na cadeia, ela foi agredida e teve o cabelo arrancado. Determinei que ficasse em cela separada e fosse feito um exame para comprovar a doença. A gente precisa saber quem precisa mesmo ir para a cadeia ou quem precisa é de apoio para a recuperação”, diz ele.
A socióloga Julita Lemgruber, que foi a primeira mulher a dirigir o sistema penitenciário do Rio de Janeiro e comanda atualmente o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, referência na pesquisa sobre o tema no país, entende que as audiências já representam “um primeiro passo para trazer mais justiça e esperança” para o sistema criminal brasileiro.

“Dezenas de milhares de reais são desperdiçados com prisões ilegais e injustas. O Estado é o primeiro a perder com isso. Está faltando a polícia fazer é investigar, ter as provas suficientes para que a Justiça mantenha a prisão. No país, só 8% dos homicídios, que é o mais grave dos crimes, são esclarecidos. A única coisa que a polícia faz é prender em flagrante e depois o juiz é que tem que manter preso. Se a polícia fizer o dever de casa, certamente não vai ‘enxugar gelo’”, afirma Julita.

Fonte: G1.